domingo, 30 de novembro de 2008

"20 anos de (não) olhar-se nos olhos, 20 anos de limpeza"

Eu estava no banco do carona do carro de uma amiga minha, ouvindo tranqüilamente o som de uma banda de rock brasileiro já extinta, enquanto ela, a motorista, argumentava calorosamente com a passageira do banco de trás, sobre a dificuldade que estavam tendo em fazer o trabalho de conclusão de estágio, mas o fato é ao pararmos no sinal nenhuma das três estava atentas ao que se passava na rua, uma pena, pois neste momento com a chuva que caia, se formava um pequeno arco-íris no céu (!), bem no momento que o cantor da banda cantava “Primavera chegou...”, cena digna de filmeco americano, bem como ignorávamos o clima, ignorávamos também o fato de que três sujeitos se aproximavam de nós aos brados e com armas em punho (!!), dizendo para sairmos do carro, uma pena mesmo não estarmos observando a paisagem.

Fatos como estes se tornaram corriqueiros na cidade do Rio de janeiro, naquela mesma rua do Engenho de Dentro mais três carros foram roubados naquele dia, fato que pude constatar no tempo que me mantive (ou me mantiveram) na delegacia tentando fazer o boletim de ocorrência, apesar disso pude observar que não fazemos a menor idéia de como proceder ao sermos assaltados.

Como agir diante de um assaltante não esta em nenhuma destas cartilhas que decoramos no decorrer da nossa vida, tendenciosamente ficamos lá paradas a espera de que o assaltante, que acumula nesta tragédia (ou comédia depende do seu nível de sadismo) a função de personagem principal, diretor e roteirista, nos dissesse o que fazer e eles não só disseram como berraram didaticamente o que fazer passo-a-passo, como quem ensina a crianças da alfabetização: “Sai do carro”, saímos, “passa a bolsa”, passamos, “me dá a chave”, demos a chave, que até este momento estava na mão da motorista, afinal mandaram sair do carro, mas ninguém havia dito nada sobre a chave, ficamos lá as três paradas no meio da rua a espera que alguém desse a próxima ordem, que foi dada pela buzina de um táxi, que estava preste a nos atropelar, só assim fomos capazes de ir para calçada.

Estávamos naquele momento reduzidas a crianças, esperando que alguém nos apontasse qualquer direção, pois a única coisa que sabíamos, até por que é incessantemente alardeada na mídia, é que em uma situação de roubo não devemos reAGIR.

O fato é que andamos pelas ruas das cidades em pequenas bolhas azuis, com músicas tocando alto em aparelhinhos fabricados na China, cujas condições de manufatura ignoramos, evitamos olhar nos olhos ou roçar os corpos, somos feitos de vidros blindados e insul-filme, a ordem é não se misturar, como efeito temos a completa alienação do mundo que nos rodeia e da noção que ainda pertencemos a ele.

È triste perceber como nossas ações podem ser majoritariamente automáticas e que qualquer coisa que fuja de um certo padrão nos torna completamente incapazes de agir, como pequenos robôs de autonomia reduzida, seguimos pequenas ordens, que nos chega através de placas de sinalização, vire a direita, proibido estacionar, não fume...Ignoramos a cidade, fazemos dela mais uma passarela para desfilarmos nossas conquistas, convicções e estilos pretensiosamente individuais, mas ela não nos ignora ou pelo menos não nosso carro zerinho.

Não vou ser simplista e afirmar que se estivéssemos atentas ao que acontecia ao nosso redor, poderíamos evitar o assalto, mas ao menos teríamos a capacidade de abandonar a noção tão inflacionada de que somos vítimas, de que um outro ser maquiavélico veio até nós, com um reluzente pedaço de metal que mata e levou o nosso reluzente pedaço de metal de quatro rodas (que por sinal também pode matar), e assim abrir mão da ingênua posição de que a cidade violenta caiu na nossa cabeça e admitir que nós caímos junto com ela, um fato ruim não nos acontece,(não nos acomete), nós acontecemos nele, somos no final das contas causa e conseqüência.

Se tivéssemos olhado atentamente teríamos visto a favela que se escondia atrás dos prédios luxuosos, teríamos visto os meninos pedindo dinheiro no sinal, seríamos contemplados com a visão das pessoas andando apressadamente na rua pulando as poças que se formavam rapidamente com a chuva por falta de ter para onde escoar, dado a enorme quantidade de lixo nas ruas, crianças indo para escola, jovens indo para seus primeiros empregos ou estágios, (assim como nós), teríamos enfim, nos visto retratadas naquela cidade violenta e em suas contradições e poderíamos então agir, sem esperar que nenhuma placa nos dissesse como, pois aquela cidade, que até então tratávamos como algo externo a nós, e portanto não nos competia, agora virou parte indissociável de nós.

A cidade no momento do assalto apareceu para mim mais cinza, apareceu mais fria, apareceu mais suja, apareceu mais populosa, apareceu mais violenta, a cidade apareceu...

Nos éramos agora finalmente parte da cidade, do lado de fora do carro, molhadas pela chuva, sem dinheiro, sem documento, a cidade diante de nós, agora miraculosamente viva, era a única a quem podíamos recorrer, suas calçadas não eram mais somente um local de passagem, era abrigo, os transeuntes antes inimigos que apenas disputavam conosco o espaço, agora eram aliados que nos guiaram até a delegacia mais próxima.

Até um cara nos apontar uma arma no meio da fuça e gritar “ta pensando que vai aonde com esta bolsa?” e de sermos obrigadas a admitir “não sei, nem pensei” e sorrir nervosamente, para o assaltante (ou será para arma?) e ainda ter que pedir desculpas pelo equívoco, (que alías poderia ser fatal), vivemos do lado de cá de nossas bolhas furta-cor.

Será que devemos esperar uma situação como esta para começar a ver e pensar “quem sou eu passando, quem sou eu ficando”?

Sei lá, nem pensei.

Um comentário:

Alfredo Toblerone disse...

“quem sou eu passando, quem sou eu ficando”?
puta merda hein! que coisa linda isso! lindo! lindo!